terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Bounded Accuracy: a "solução" para um problema inventado

Saudações masmorreiros e masmorreiras!

Esses dias, ouvindo o imprescindível Café com Dungeon, mais especificamente o episódio sobre Bounded Accuracy (#111), veio-me à mente uma revelação greyhawkiana: as razões por trás do "combatocentrismo" das edições modernas de D&D.

Para além do vácuo deixado pela remoção das mecânicas de Reação, Moral e Fuga/Perseguição, que já explorei em um post anterior, estou cada vez mais convencido de que há outro fenômeno que ajuda a compreender o alargamento temporal potencialmente infinito do combate no D&D moderno. E há, inclusive, relação direta com a remoção das mecânicas mencionadas.

D&D 3e: CA nas alturas

Sem mais delongas, vamos à minha reflexão: com a remoção dessas mecânicas na 3ª edição, nos hoje longínquos anos 2000, um elemento da ficha, a Classe de Armadura (CA) passou a se destacar em relação aos demais. Como muito bem apontaram o meu xará Balbi e o Eduardo Vieira no referido episódio de podcast. É nesse mesmo período que ocorre a mudança do cálculo de rolagens de acerto em relação à Classe de Armadura como valor ascendente - muito provavelmente para facilitar tal operação, o que faz todo sentido.

O resultado prático disso é que, para demarcar a diferença entre combates fáceis e difíceis, em suas diferentes gradações, era preciso escalonar o CA cada vez mais, para refletir o aumento progressivo dos bônus nas rolagens de acerto.

Como a 3ª edição constrói-se ao redor de personagens cada vez mais poderosos e épicos, com muitos poderes e bônus acumuláveis, é de conhecimento amplo que isso levou a uma série de inconvenientes relacionados à necessidade de operar cálculos bastante exaustivos no momento de cada rolagem - o que tende a se agravar conforme os personagens alcançam níveis maiores. Era preciso equacionar esse problema.

D&D 5e: precisão limitada

A 5ª edição oferece uma solução elegante para a questão: controla os escalonamentos de bônus de rolagem e CA, tornando um cenário em que um personagem nível médio/alto se depare com um batalhão de goblins não algo trivial, mas um perigo iminente. Pois, apesar da diferença de poder existente, como não há um abismo intransponível entre a rolagem de acerto e o valor da CA, isso significa que alguns (quanto mais inimigos, maior a probabilidade) vão acertar, afastando a trivialidade do encontro.

Esse design mecânico, denominado bounded accuracy (ou, em tradução livre, precisão limitada) representa uma solução bastante eficaz encontrada... para um falso problema criado artificialmente.

Como o D&D 5e (não) resolve o problema do combate

Até essa altura a reflexão parece encaminhar para o enaltecimento dos desenvolvedores da 5ª edição. E, vejam, não estou aqui a condená-los - eles trabalharam com o que tinham à disposição. O problema, como pretendo demonstrar a seguir, é que, para corrigir um problema, acabaram por criar outro.

Nas edições antigas o combate era rápido e brutal. Tudo funcionava bem, com coesão, dentro de uma proposta específica de design, ancorada na inspiração literária do gênero de Espada e Feitiçaria, em que o combate é, de fato, visto dessa forma.

Mas o D&D moderno transita em direção a um estilo mais épico. E, para refletir o heroísmo dos personagens, seu nível de poder escalona significativamente. E, como vimos, a 5e resolve o problema do desbalanceamento a que isso pode levar (personagens "invencíveis") segurando a inflação numérica.

Se, por um lado, isso parece uma solução elegante, por outro, não deixa de revelar outros problemas. Um deles é o fato de que um simples guarda vestindo uma platemail tem a mesma CA que um Dragão Branco Adulto - 18 em ambos os casos. Na 3ª edição, porém, esse mesmo guarda teria os mesmos 18, enquanto o mesmo dragão teria incríveis 26 de CA! Um Dragão Branco "Great Wyrm", para comparação, possui 41 de CA.

A 3e, apesar dos problemas mencionados, conseguia traduzir em termos mecânicos de forma muito mais eficiente as diferentes gradações de poder/dificuldade das diferentes criaturas desse universo fantástico.

E, para demarcar a diferença de poder/dificuldade existente entre um guarda e um dragão, a 5e resolve isso inflando a quantidade de Pontos de Vida (PV) da criatura mais poderosa/resiliente.  Criaturas poderosas tornam-se Sacos de PV. Resultado? Os combates tornam-se lentos e desinteressantes.

Sleep spell, de Larry Elmore

Duas possíveis soluções

1) Consertar a 5e
Ciente desse problema, recentemente o Matt Colville soltou um vídeo em que propõe um design alternativo para criação de Encontros - principalmente no caso de "chefões". De forma bastante engenhosa, valendo-se de todo conhecimento que ele possui, na medida em que foi e é desenvolvedor de conteúdo para D&D, a solução oferecida por ele é a atribuição de poderes/ataques vinculados à temática do(a) antagonista.

A proposta foi, aparentemente, muito bem aceita. Na medida em que muitos Action Oriented Monsters desenvolvidos por fãs começaram a inundar o seu subreddit. Ajuda a mitigar o problema, mas o resultado é, na minha opinião, insatisfatório. Mas certamente ajuda com o problema dos combates lentos e desinteressantes, pois insere mecânicas potencialmente divertidas, que funcionariam para entreter/distrair os jogadores sem entendiá-los em demasia.

2) Retorno às origens
Outra possibilidade, estranhamente pouco cogitada, é simplesmente retornar às edições antigas e ao seu combate rápido, letal, significativo e surpreendente. Inclusive, não há nada que impeça o DM de incluir ataques/manobras diferenciadas a seus monstros, mesmo em se tratando de edições antigas de D&D. Me vem à cabeça, a título de exemplificar, o primeiro boss do Tomb of the Serpent Kings, do Skerples (ótima dungeon introdutória ao old school gaming que já mencionei aqui).


Enfim, espero ter conseguido agregar alguns elementos novos ao debate. Um ótimo fim de ano a todos(as)!

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