quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Raça como Classe

Saudações masmorreiros e masmorreiras!

Hoje abordaremos um tópico que era relativamente trivial nas edições mais antigas de D&D, mas que hoje, devido os caminhos percorridos pela evolução do hobby, tornou-se bastante polêmico: o conceito de raça como classe.

Raças no OD&D

No OD&D, ou D&D Original, lançado em 1974, as classes são dividas da seguinte forma. Classes principais: 
  • Fighting-men
  • Magic-Users
  • Clerics
Ou seja, guerreiros (ou algo próximo), magos (ou, mais literalmente, usuários de magia) e clérigos. Mas, adicionalmente, lista-se as seguintes classes/raças:
  • Dwarves
  • Elves
  • Halflings
E, na sequência, há a famosa indicação de que não há motivo impedindo que os jogadores escolham outras opções. E cita, como exemplo, a possibilidade de jogarem com um Dragão, mas devidamente escalonado (é sugerido o uso de um Dragão Jovem).

Os anões só podem ser guerreiros, possuem limitação de nível (6º), mas a eles são concedidas algumas vantagens pontuais. Os elfos podem ser guerreiros ou magos e possuem a habilidade de alternar entre ambas as classes. E, por fim, os halflings (após uma indicação irônica, do tipo, "se é que alguém vai querer ser um") funcionam de forma parecida com que os anões, mas possuem uma limitação de progresso ainda mais significativa (4º nível).

No suplemento I de OD&D, intitulado "Greyhawk", outras classes, como o Thief (Ladrão) e o Paladino (que era uma possibilidade para personagens Leais). E alguns ajustes nas opções inicias são sugeridos.

O AD&D, lançado em 1977, seguiria o caminho hoje mais conhecido por todos: o de separar as raças e classes (agora expandidas com Druidas, Patrulheiros, Ilusionistas, etc), aumentado as possibilidades de combinações possíveis entre elas - o que só não é totalmente verdade pois manteve-se a ideia de colocar restrições de acesso a determinadas classes por algumas raças.


D&D Básico

O D&D Básico, o leitor do blog já está ciente disso, possui diferentes versões. Na primeira delas, a desenvolvida por J. Eric Holmes também em 1977, começa a indicar uma mudança mais significativa em uma direção contrário, que só realmente ganhará maior consolidação na versão de D&D Básico apresentada por Tom Moldvay em 1981.

Essa versão, composta ainda pelo livreto Expert, de David Cook, compõe o famoso D&D B/X (Basic + eXpert), que atualmente fornece base para alguns dentre os mais populares retroclones (Labyrinth Lord, Lamentations of the Flame Princess e Old-School Essentials - para ficar só nos mais conhecidos).

Nela, as raças disponíveis aos jogadores são assim listadas já no índice:
  • Clerics
  • Dwarves
  • Elves
  • Fighters
  • Halflings
  • Magic-Users
  • Thieves
Clérigos, Guerreiros, Magos e Ladinos são classes restritas a humanos. Se algum jogador(a) optar por ser humano(a), poderá escolher dentre essas quatro opções. Caso opte por ser um não-humano (chamado de demi-humans), terá ainda as escolhas adicionais de anões, elfos ou halflings à disposição.

E, ao contrário do OD&D as raças não dão acessos a determinadas classes: elas são, em si mesmas, as classes. Cada uma possui um flavor próprio. Elfos são uma espécie de guerreiros/magos; anões são guerreiros com experiência em masmorras e halflings são guerreiros com alguns bônus específicos (melhores em se esconder, atacar de longe e contra criaturas grandes, basicamente).

Como as classes possuem requisito de experiência diferenciado entre si, isso permitiu aos desenvolvedores balancear  o possível desiquilíbrio que ofereciam em níveis baixos. O Anão começa melhor que o Guerreiro, mas, por sua vez, evolui mais lentamente. E, assim como no OD&D, alcança o nível "limite" antes que os humanos - o que se observa em geral nessa edição.

O que os humanos têm de tão especial?

Esses dados todos parecem indicar certa predileção, ou favorecimento, dos desenvolvedores em relação aos personagens humanos. Seria isso, simples assim? Ou há algo mais por trás? Acertou quem chutou na segunda hipótese!

Apesar do próprio Gary Gygax ter dito mais de uma vez não ser tão fã assim de Tolkien, de ter colhido suas referências em outros autores de literatura fantástica (Robert Howard, Jack Vance, etc), um pressuposto desenvolvido pelo escritor sul-africano e que se tornou uma espécie de fundamento desse gênero é o de que o presente da narrativa pressupõe uma espécie de Era dos Homens (no caso de Tolkien, a Terceira Era).

Em outras eras outras raças, ainda existentes, como os anões e os elfos, alcançaram seu apogeu e, atualmente, vivenciam o seu lento declínio - o que abre espaço para o protagonismo dos seres humanos. Que são, em geral, tidos como seres valentes e ambiciosos (o que é, simultaneamente, seu grande trunfo e grande defeito) e que preenchem o centro do palco da narrativa.

Isso remete, parece-me, aos próprios mitos do mundo real que versam sobre antigas civilizações altamente desenvolvidas (Atlântida, Lemúria, etc), que encontraram seu apogeu e subsequente declínio. E a força desses mitos, espécies de parábola que adverte sobre os riscos do abuso do poder, faz-se presente até os dias atuais - ainda que nem sempre consigamos rastrear suas origens, posto que perdidas na imensidão do tempo.

Essas razões, parece-nos, ajudam a compreender a razão da centralidade de seres humanos no D&D. O que começa a ser relativizado quando se percebe que havia grande atração, por parte dos jogadores, de poderem optar por raças exóticas, mais estranhas mesmo que os demi-humans, como genasis, tieflings, devas, etc.



O que nos leva a um grave problema de worldbuilding, pois, como justificar a coexistência cosmopolita de todas essas raças em um mesmo local? Eu disse problema, mas isso não traduz bem a questão. A questão é que isso acaba pressupondo que todo cenário seja (ou, ao menos, possua uma região/cidade com essas características - que é como resolvi isso no meu cenário, especificamente) a típica metrópole cosmopolita, o que acaba por afastar bastante o tom que as edições antigas procuravam emular.

Culturas Abertas/Fechadas

Outra questão que nos parece relevante é o fato de que a ideia de raça como classe acaba por reforçar um importante aspecto do worldbuilding: o fato de que as culturas não-humanas possuem grande coesão e que, no geral, os indivíduos apresentam uma identidade relativamente una.

Em oposição aos humanos que, seja lá por que motivo (em geral, a ambição - que, como vimos, pode ser boa ou ruim - ou ambos), expandem seus territórios (o que também é possível devido a uma capacidade significativa de reprodução - o que é outro lugar-comum da fantasia, o fato de que anões e elfos se reproduzem mais lentamente) e, como resultado, a cultura de cada região/povo torna-se diferenciada.

Particularmente acho interessante essa ideia. Que ajuda a resolver alguns problemas que tive na criação do meu cenário: o fato de não visualizar o sentido de um Elfo Bárbaro - por exemplo. Mas, adotando as regras opcionais presentes no Old-School Essentials Advanced, é possível incorporar ambos os conceitos de forma simultânea!

Assim, seria possível tanto a existência (predominante) de Elfos típicos (Guerreiros/Magos), como alguns indivíduos que, [insira sua backstory aqui] acabaram por se tornar Bárbaros. Ou Monges. Ou Clérigos. É para essa direção que tendo a caminhar: raça como classe é a regra, o que não inviabiliza (e até, pelo contrário, acaba por valorizar, realçar) exceções.

Dúvidas, sugestões de temas a serem abordados, ou caso queiram simplesmente dar um alô, é só deixar um comentário abaixo. Até a próxima!

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